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Luciano Trigo

Luciano Trigo

Contra a bandidolatria: entrevista com Roberto Motta (parte 1)

(Foto: Reprodução Twitter)

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“Os pobres colhem o que os intelectuais semeiam”, afirma Theodore Darlymple em uma das epígrafes do livro “A construção da maldade – Como ocorreu a destruição da segurança pública brasileira”, de Roberto Motta.

De fato, já há muitas décadas o pensamento sobre o combate à criminalidade no Brasil vem sendo monopolizado por uma corrente sociológica que enxerga no criminoso uma vítima da sociedade. As consequências estão aí: a percepção generalizada de impunidade e índices absurdos de assassinatos e outros crimes violentos. Essas consequências impactam diretamente a vida de todos os brasileiros, mas são sofridas especialmente pelos mais pobres, e mais especialmente ainda pelos moradores de comunidades dominadas pelo narcotráfico.

Na contracorrente da bandidolatria que parece prevalecer na mídia, nas universidades e até mesmo em órgãos do Poder Judiciário, Roberto Motta faz um apelo ao bom senso. Citando o economista Gary Becker e psiquiatras forenses norte-americanos, ele afirma que o crime é sempre uma questão de escolha – e que associá-lo à pobreza faz parte de uma narrativa preconceituosa contra os pobres. Em um ambiente permissivo e com uma legislação mais preocupada com o bandido do que com a vítima, argumenta o autor, é natural que mais indivíduos optem pelo crime.

“A construção da maldade” identifica as raízes da criminalidade, investiga suas causas e aponta os rumos a serem seguidos para vivermos em um país com menos violência. Mas, segundo o autor, isso jamais acontecerá se continuar acreditando nos diagnósticos equivocados dos acadêmicos de esquerda e dos especialistas de gabinete.

Nesta entrevista, Roberto Motta – engenheiro, mestre em gestão e ex-consultor do Banco Mundial – fala sobre o perigo de subordinar a questão da segurança pública a uma agenda ideológica que ignora as vítimas e transforma os bandidos em pobres coitados que precisam ser acolhidos pela sociedade, e não punidos.

- Você conta em seu livro o caso de um comandante da PM que foi orientado a substituir a palavra “bandido” por “indivíduo em situação de risco social”. De que forma o controle da linguagem vem sendo usado para estimular a impunidade e a bandidolatria?

ROBERTO MOTTA: A linguagem é um dos principais instrumentos na criação de uma mentalidade que trata os criminosos como se fossem vítimas da sociedade, como se fossem pobres coitados que não merecem punição. Esse exemplo de "indivíduo em situação de risco social" é apenas um, existem inúmeros outros. A legislação que trata do criminoso menor de 18 anos é cheia disso. O criminoso menor de 18 anos é chamado de “adolescente em conflito com a lei”. Ele não é preso, ele é “apreendido”. Ele não recebe sentenças, ele é “internado para o cumprimento de medidas socioeducativas". É um eufemismo atrás do outro.

Outro exemplo flagrante é a forma pela qual os criminosos presos são designados. Muito tempo atrás, eles eram “presos” ou “presidiários”. Depois, eles passaram a ser chamados de “detentos”, depois passaram a ser chamados de “apenados”, e agora a terminologia oficial é “pessoas privadas de liberdade”. Olha só: “pessoas privadas de liberdade”. Na verdade, as pessoas privadas de liberdade somos nós, os cidadãos comuns, que vivemos fechados em casa, atrás de grades, com medo do crime violento.

- Você escreve que “ressocialização” é um conceito ideológico. Mas a recuperação do preso não deve ser um dos objetivos do sistema penitenciário?

MOTTA: A função da prisão nunca foi ressocializar. A prisão tem três funções principais. primeiro, ela remove o criminoso da sociedade: enquanto estiver preso, ele não estará cometendo crimes. A segunda função é dar o exemplo: outras pessoas que estão pensando em cometer crimes veem o exemplo de alguém que foi preso e pensam: “Não vale a pena eu cometer um crime, porque eu vou ficar muito tempo em uma cela”.

A terceira função é a retribuição. Dar ao criminoso uma pena, para que ele cumpra e entenda a importância dos valores da sociedade que ele destruiu ao cometer o crime. É essa retribuição que permite às vítimas começar o processo de cura, de recuperação. Dependendo do crime, as vítimas ficam traumatizadas para o resto da vida. Então é importante, para o sentimento de justiça da sociedade, saber que o criminoso pagou uma pena, proporcional à gravidade do crime que ele cometeu.

Ressocialização é um fetiche ideológico. Isso já foi explicado por vários estudiosos, entre eles o psiquiatra forense Stanton Samenow, que diz que não existe ressocialização - até porque o criminoso, para cometer o crime, já estava na sociedade. Ninguém comete um crime em uma ilha deserta: o criminoso, voluntariamente, escolheu cometer o crime, rompendo os laços que ele tinha com a sociedade.

Não existe ressocialização, o que existe é regeneração, que é o processo pelo qual um criminoso desiste da vida de crime e resolve seguir o caminho de uma vida correta. Para isso, ele tem que se arrepender, tem que ressarcir as pessoas que foram vítimas do crime que ele cometeu, tem que cumprir a pena que a sociedade estipular e tem que assumir o compromisso de nunca mais cometer crimes.

O papel do Estado nisso é quase nenhum. A regeneração é uma escolha individual, um processo individual do criminoso. E a maioria dos criminosos não se regenera. Isso é um fato comprovado pelas estatísticas do mundo inteiro. Nos Estados Unidos, mais de 60% dos criminosos voltam a cometer crimes. Os números são semelhantes no Reino Unido e outros países da Europa.

"No Rio de Janeiro, em alguns locais, traficantes usam jacarés e porcos para se livrar dos corpos das pessoas que eles matam"

- No Rio de Janeiro em particular, mas também em qualquer grande cidade brasileira, costuma-se dizer que a população das favelas e comunidades tem mais medo da polícia que do bandido. Isso é verdade?

MOTTA: Não é isso que eu encontro. Na minha experiência, quando eu converso com moradores das comunidades, em situações em que eles realmente podem dizer o que querem, o que a gente vê é um cotidiano marcado pela opressão diária do narcotráfico. Esta é a realidade das favelas no Rio de Janeiro. A presença da polícia significa uma oportunidade de se livrar, ainda que às vezes apenas temporariamente, dessa ditadura fascista do narcotráfico. Não há outra forma de descrever.

Faz parte da operação das facções do narcotráfico uma campanha de guerra psicológica, muito bem financiada e que tem o apoio de segmentos da mídia, do entretenimento, da cultura, do ensino, para perpetuar essa imagem de que a polícia é uma força de opressão, quando, na verdade, para a maioria dos moradores das comunidades, a polícia é uma força de libertação.

- Mas por que os crimes praticados pelo narcotráfico nas comunidades não repercutem, nem geram manifestações nas ruas e nas redes sociais? Por que não se organizam protestos contra os traficantes? Há uma indignação seletiva?

MOTTA: Os crimes do narcotráfico não provocam a mesma repercussão dos outros crimes pela razão mais óbvia possível, mas que nunca é mencionada pela imprensa. Os moradores das comunidades vivem sob o jugo das facções, vivem sob o controle armado, com fuzil, com granada.

O narcotráfico é a atividade criminal mais violenta de que se tem notícia hoje. Qualquer morador de uma comunidade que ousar fazer um comentário ou reclamação em público sofre uma represália extremamente violenta e imediata. As favelas, não só no Rio, mas no Brasil inteiro, são conhecidas por terem cemitérios clandestinos. No Rio de Janeiro, em alguns locais, os traficantes usam animais como jacarés e porcos para se livrar dos corpos das pessoas que eles matam.

Isso se alia a uma predisposição da grande mídia de atacar a polícia. Então o que a gente vê não é exatamente uma indignação seletiva, é uma incapacidade de haver qualquer tipo de manifestação dos moradores, a não ser com grave risco de vida.

Roberto Motta, autor do livro "A construção da maldade"

- Quais são as raízes dessa inversão de valores que, a seu ver, fazem bandidos serem tratados como vítimas no Brasil?

MOTTA: A gente vê no Brasil exatamente isso: uma inversão de valores, a caracterização do bandido como uma vítima da sociedade, alguém que não teve oportunidade. Acabamos de ver isso em um discurso recente do Lula, que mencionou explicitamente que o bandido é bandido por causa da pobreza e do preconceito racial.

O que leva a alimentar essa visão errada é uma mistura de três coisas: o populismo corrupto; o fato de a criminalidade organizada, especialmente o narcotráfico, movimentar uma quantidade excepcional de dinheiro e se infiltrar em todas as instituições; e, por último, a ideologia de extrema esquerda, que apoia essa glorificação do criminoso como um instrumento revolucionário.

É uma mistura dessas três coisas - populismo corrupto, crime organizado e o extremismo de esquerda - que contamina não só o sistema de justiça criminal, mas todas as instituições da sociedade: a educação, incluindo o ensino nas universidades de Direito, a mídia, a cultura, o entretenimento, a literatura, as artes plásticas. Tudo isso hoje no Brasil está contaminado por essa ideia de que o criminoso é um pobre coitado, que merece ser abraçado, que precisa ser ressocializado, e nunca punido.

- Mas qual seria o interesse da grande mídia em ignorar as vítimas e demosntrar simpatia pelos criminosos, como aconteceu no caso da famosa entrevista do dr. Dráuzio Varella com o estuprador de uma criança, no “Fantástico”?

MOTTA: A mídia ignora as vítimas e fica do lado dos criminosos porque a mídia é composta por profissionais de jornalismo que, majoritariamente, aprenderam na faculdade de Jornalismo ou de Comunicação; que aprenderam no segundo grau; que aprenderam no primeiro grau; que aprenderam no jardim de infância; enfim, que aprenderam de todas as formas possíveis que o criminoso é um pobre coitado.

É uma vida inteira de doutrinação, de aprendizado, sem nunca ter ouvido uma posição contrária a isso. Aí o sujeito chega aos 20 anos, aos 30 anos, vai trabalhar em um jornal ou emissora de televisão e reproduz aquilo que ele aprendeu a vida inteira, e que ele acha que é o correto.

"Quando os benefícios são grandes e os riscos são baixos, mais pessoas vão entrar para o crime. É isso que acontece hoje no Brasil"

- De que forma as ideias do economista Gary Becker explicam os altos índices de criminalidade no Brasil?

MOTTA: Gary Becker, economista americano que ganhou o Prêmio Nobel de Economia em 1992, explica que o crime é uma escolha racional. Ante de cometer o crime, o criminoso faz uma avaliação inconsciente dos riscos e dos benefícios. Quando os benefícios são grandes e os riscos são baixos, mais pessoas vão entrar para o crime.

É isso que acontece hoje no Brasil. A gente pode dizer que o crime tem um componente macro e um componente micro. O componente micro é a decisão individual do criminoso de cometer o crime. No nível macro, você tem os incentivos e os riscos. Se os riscos são baixos e os incentivos são altos, mais criminosos vão cometer crimes.

- Fale sobre o preconceito da narrativa, muito disseminada, que associa pobreza e criminalidade, como se todo pobre fosse um criminoso.

MOTTA: A narrativa que associa pobreza e criminalidade é uma falácia que pode ser facilmente desmontada. A maioria dos pobres nunca cometeu crime algum. O crime é uma escolha, que é feita tanto por pessoas que são pobres quanto por pessoas de classe média ou mesmo ricas. Crime é sempre uma escolha.

Stanton Samenow conta que, ao longo da sua vida, estudou milhares de criminosos, e que a maioria tinha irmãos, criados nas mesmas condições, com as mesmas dificuldades, e que nunca cometeram crimes. Basta a gente ir a qualquer favela do Brasil para constatar que a maioria das pessoas que moram lá são trabalhadores que acordam cedo, que têm vidas honestas, que trabalham duro para sustentar suas famílias.

No livro “Ascensão e queda do crime violento na América”, outro psiquiatra, Barry Lester, mostra que, em épocas de grande depressão econômica dos Estados Unidos, as taxas de criminalidade foram baixas, enquanto em outras épocas, de progresso e grande desenvolvimento econômico, houve altas taxas de criminalidade. Portanto, não há nenhuma associação de crime com pobreza.

O que acontece é que, no efeito macro, aquele no qual a gente considera os riscos e os benefícios para o criminoso, quando se trata de regiões pobres geralmente a presença da polícia é menor, a presença do Estado é menor. Então os riscos para o criminoso são menores, e os benefícios são maiores. A ausência do Estado cria um estímulo para o criminoso cometer o crime.

(Continua)

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